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Arquivos

Nessa sessão, você pode encontrar dois conjuntos distintos de materiais. Uma parte do material iconográfico de arquivo relacionado a alguns de nossos projetos além de um conjunto de textos e entrevistas escritos pelos coordenadores do coletivo e por alguns de seus colaboradores sobre as particularidades de cada projeto e sua relação com a tradição documental no teatro. Completa essa sessão, o ensaio NOTAS SOBRE O TEATRO DOCUMENTÁRIO, escrito por Peter Weiss nos anos 1960, ensaio que serviu como principal referência teórica para o desenvolvimento de nossos projetos.

Escritos

O TEATRO COMO ASSEMBLEIA

por BRUNO PEIXOTO (Rio de Janeiro, 2021)

Completadas as primeiras 40 apresentações desse trabalho, já alcançamos o distanciamento necessário para analisar suas potencialidades sem correr o risco de fazer um exercício especulativo sobre as suas qualidades e limitações. A Casa e o Mundo lá fora – Cartas de Paulo Freire para Nathercinha é a terceira parte da Trilogia Documental – A Voz dos Anônimos, ciclo de pesquisas iniciado pela En La Barca Jornadas Teatrais em 2017 com Antônio de Gastão – Memória é Trabalho e Lugar de Cabeça Lugar de Corpo, projetos criados a partir dos princípios do Teatro Documentário.

Em linhas gerais, o Teatro Documentário se estrutura dramaturgicamente a partir do uso de relatos reais presentes em cartas, entrevistas, fotos, filmes, dados estatísticos, matérias jornalísticas e demais materiais similares. Todo o material levado à cena é documental. É uma tradição teatral com grande vocação para a reflexão de temas políticos e é herdeira direta dos experimentos de Brecht, Meyerhold, Maiakovski e Piscator nos anos 20. Teve sua primeira formulação metodológica feita pelo dramaturgo alemão Peter Weiss nos anos 60 com o ensaio “Notas sobre o Teatro Documentário”, base de nossa pesquisa. Nessa linha de pesquisa cabe ao dramaturgo não a criação de cenas com unidade dramática de ação e tempo, com conflitos de personagem, atmosferas e ferramentas de identificação ou repulsa. Pelo contrário, indo na contramão de um teatro hegemônico, apresenta-se como um teatro narrativo e gestual, onde a edição de um vasto material compilado na pesquisa se transforma em fragmentos cênicos autônomos com a função de mostrar as contradições sociais do tema abordado e os seus múltiplos pontos de vista. Mergulha na Memória para tocar na História. (...)

CULTURA POPULAR E MEMÓRIA: o “Fazimento” de uma identidade cultural na voz feminina

por ANNA FERNANDA CORRÊA (Rio de Janeiro, 2018)

Pensar o caminho percorrido pelo Coletivo En La Barca Jornadas Teatrais é pensar o “fazimento” de uma identidade coletiva na junção colaborativa de identidades individuais. Pedimos emprestado o termo “fazimento” ao antropólogo, escritor e político brasileiro Darcy Ribeiro para definir a Segunda Edição do: Círculos de Cultura En La Barca[2]. “Fazimento” é um substantivo masculino cujo significado é ato ou efeito de fazer; feitura; fazedura. Contudo hoje quero me utilizar do termo “fazimento” para designar substantivos femininos, substâncias femininas que fizeram, contribuíram, construíram para a feitura de uma identidade cultural.
Seguindo a tradição do teatro documentário construímos nosso caminho artístico, mergulhando em fontes e documentos históricos (cartas, documentos oficiais, fotos, etc.) para construir a dramaturgia; atentos aos aspectos culturais, artísticos e políticos traçando assim nossa identidade como coletivo teatral. Seguir a linha do teatro documentário é descobrir que há outros meios de dizer, é pensar no teatro como campo social de trocas interdisciplinares, como uma área de investigação artística capar de repensar o sentido estético da “arte pela arte”
[3]. É transformar o palco num espaço de memória social. (...)

LUGAR DE CABEÇA LUGAR DE CORPO

por DANIELLE OLIVEIRA (Rio de Janeiro, 2017)

Por que a loucura? Por que o louco? Por que a mulher?

Ao iniciarmos o processo de pesquisa sobre a loucura, muitas histórias de mulheres começaram a surgir. Não pode ser o acaso e, sim, o reflexo de uma cultura social que abafou e tentou calar a presença feminina da história e que, paradoxalmente, é a mesma ação que enaltece a força da mulher. Histórias que continuam existindo e resistindo apesar do tempo. Histórias de mulheres que viveram vidas inteiras em hospícios e sanatórios simplesmente por não cumprirem ou não se adequarem aos “padrões de normalização” impostos à mulher daquela época.

Considerando os prontuários dos séculos XIX e XX, dos hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro, os motivos de internação variavam entre mulher que se separou do marido, mulher que não aceitou o noivo escolhido pela família, mulher que escrevia livros, mulher que engravidou, mulher que desobedeceu o pai ou o patrão, que cantava demais ou até mesmo casos em que o marido decidiu ficar com a amante e, por isto, internou a esposa num hospício. (...)

O MUNDO ESTÁ DENTRO DA CASA

por BRUNO PEIXOTO (Rio de Janeiro, 2018)

Completadas as primeiras 30 apresentações desse trabalho, já alcançamos o distanciamento necessário para analisar suas potencialidades sem correr o risco de fazer um exercício especulativo sobre as suas qualidades e limitações. O trabalho em questão é a terceira parte da Trilogia Documental – A Voz dos Anônimos, ciclo de pesquisas iniciado pela En La Barca Jornadas Teatrais em 2017 com Antônio de Gastão – Memória é Trabalho e Lugar de Cabeça Lugar de Corpo, outros dois projetos dessa trilogia. Estão estreitamente vinculados aos princípios do Teatro Documentário, tradição teatral que une os três trabalhos dentro de uma mesma assinatura artística, norte e ferramenta principal de abordagem de temáticas sociais tão diversas quanto a Cultura Popular, a Luta AntiManicomial e a Educação Pública.

Outro elemento fundamental que aparece como a argamassa que une tijolos de naturezas tão distintas está no uso da Memória como ponto de ligação não somente entre os três trabalhos dessa trilogia, mas, principalmente, entre os dois principais criadores da cena: o espectador e o artista. Sobre esse ponto, vale um parágrafo de desenvolvimento específico, mas o que já vale destacar, é que no processo de criação desses trabalhos, aprendemos a escrever a palavra Memória de forma substantiva, com letras maiúsculas, uma ciência irmã da ciência da História; algo bem distante da memória como um exercício de nostalgia pessoal ao acessar as lembranças mais caras ou mesmo da memória como forma de falar dos sentimentos universais de todo o ser humano. Contraditoriamente, é essa primeira memória o ponto de partida e também o portão de entrada na relação com o espectador. E foi analisando isso coletivamente que Anna Fernanda, atriz e narradora guia de A CASA e o MUNDO lá fora – Cartas de Paulo Freire para Nathercinha, sintetizou e conceituou um princípio de trabalho presente em todos os trabalhos da trilogia:

Nós partimos da memória individual para falar da Memória Coletiva. (...)

ANTÔNIO DE GASTÃO - MEMÓRIA É TRABALHO: um trabalho decolonial da memória

por NATÁLIA GADIOLLI (Rio de Janeiro, 2017)

Quem é filho do interior, quem nasceu em lugarejos pequenos sabe bem como é isso, de ser o Fulano de Ciclana, ou a Ciclana de Beltrano. Eu, que também nasci numa cidade pequena - bem menor que Cabo Frio, a cidade de Antônio de Gastão - também já fui apresentada várias vezes como a Natália da Leia ou a Natália do Veio Mica – apelido de meu pai. Esse é o primeiro reforço. Às vezes vem acompanhado do que seus pais fazem – Natália da Leia, que trabalha na prefeitura -, de quem eles são filhos – Natália da Leia do Seu Zé Gadiolli -, de referências da rua onde você mora – Natália da Leia, da rua do Missionários. E assim, nas pequenas relações, nessas micro-histórias individuais se conta a história de um coletivo, de um bairro, de uma cidade. Esse foi um dos caminhos que a peça fez trabalhar minha memória.

Aqui já encontramos a primeira relação desse trabalho com o pensamento decolonial, pois se trata de descolonizar o saber e pensar por outras epistemologias, trata-se também de olhar para a construção do nosso saber e de identificar o que nos coloniza, para encontrar outras maneiras de contar nossa própria história, à nossa maneira. Como Antônio de Gastão conta a dele e como uma peça de teatro conta a dela. (...)

CADÊ A RIQUEZA DO PRINCÍPIO DO MUNDO

por Maria Aparecida Ferrer (Arraial do Cabo, 2019)

Até então, eu conhecia um pouquinho da história e dos saberes de Antônio de Gastão, como pescador, porque eu estudava as histórias de pescadores tradicionais de Arraial do Cabo e já tinha ouvido falar de Antônio de Gastão. Mas a partir da peça pude conhecer o Antônio professor, o Antônio filósofo, o Antônio memorialista. O Antônio, poeta, escultor, criador de fantoches e de encenações teatrais, sendo um completo artista. Hoje, ao rememorar essas recordações me emociono novamente, em diferentes momentos.

Na noite de junho de 2017, chegando ao Museu de Arte Religiosa e Tradicional de Cabo Frio, percebi que o palco da peça era no centro do salão. E que nós, plateia, ficaríamos sentados bem próximos dos atores. Quando Bruno Peixoto começou a falar no microfone com voz grave, informando “nota de falecimento”, de modo muito espontâneo e com as pessoas ainda chegando e se assentando na plateia, percebi que a peça estava começando.

Trechos de gravações reais em áudio, com a voz de Antônio de Gastão, se misturavam à voz de Bruno Peixoto, que ora encenava o pescador-professor-artista, ora encenava o papel de um narrador. Em um baile de lembranças e imagens cênicas, um banquinho no centro do palco, uma rede de pesca lançada ao "mar teatro", um par de sapatos gastos, Bruno (ou Antônio de Gastão) nos avisa de que é preciso “puxar pela memória” os acontecimentos, as histórias, as tradições e sabedoria dos antigos e começa a nos lembrar de como aconteciam as pescarias, como era o lançar das redes e como eram feitas as casas de estuque, barreando a parede, e como elas eram mais resistentes, inclusive.(...)

ENCONTRANDO ANTÔNIO: das saudades que não sabemos

por Sabine Mendes Moura (Rio de Janeiro, 2017)

Cheguei cedo ao espaço que me acolhia sem iludir, onde Bruno, meu amigo de anos e sua companheira, Anna, se concentravam para fazer a apresentação de Antônio. Sentei-me nas cadeirinhas brancas de plástico, daquelas de churrasco e festa, e escutei a trilha que haviam posto para tocar: canto, conto e voz, naquela gravação ruidosa, naquilo que, me parecia, um dia, fora uma fita cassete e, agora, era arquivo em um tablet sobre a mesa do lugar. Agora, era um arquivo de voz em looping. A voz de Antônio. E, de certa forma, aquela voz era um silêncio. Antônio de Gastão se apresentava e eu, a princípio, não lhe disse "muito prazer". Verdade que não lhe disse nada, apenas ouvi. Já percebia que Antônio não seria uma peça, nem proeza de nenhuma companhia, mas um encontro com raízes há muito esquecidas. E, talvez, dai viesse o silêncio e a comoção que brotou quando, dando seguimento à história, leu-se a nota de falecimento de Antônio Barros da Cruz.

Não foi uma peça, embora houvesse peças. Peças quase de museu - fotos, uma rede, uma réplica de mala, bonecos que Antônio (e tantos outros) confeccionavam - trazidos à vida em uma composição delicada de vozes. Havia o relato do "pescador artista", homem de Cabo Frio, e os relatos das pessoas de sua terra, cuidados, colhidos na lida, no trabalho cotidiano e ressignificados pelo trabalho do corpo dos dois jovens atores. Havia o estudo do pesquisador da UERJ que dedicou sua vida à ler e (re)conhecer Gastão, o professor. Havia a presença de Amena Mayall, que (des)cobriu os olhos da cidade grande para a beleza da narrativa da terra, cabofriense, brasileira que era e é a arte de Antônio. E, como explicar, que, nesse "teatro documento", tendo a foto de Amena em mãos e vendo Anna falar como Amena, no lugar da ilusão e do distanciamento, se produziu, em mim, a saudade? (...)

NOTAS SOBRE O TEATRO DOCUMENTÁRIO

por Peter Weiss

O teatro realista da atualidade conheceu numerosas formas desde o movimento do Prolekult, o Agitprop, as pesquisas experimentais de Piscator e as peças didáticas de Brecht. Hoje ele é designado como teatro político, teatro documentário, teatro de protesto, anti-teatro para empregar um elemento comum. Dado às dificuldades que surgem com o estabelecimento de uma classificação destes modos de expressão dramática muito diferentes, nós vamos procurar aqui tratar de uma forma de teatro, cujo objetivo exclusivo é a documentação sobre um assunto, e que nós chamamos Dokumentarisches-Theater, Teatro Documentário.

1. O teatro documentário é um teatro relatório. Processos verbais, dossiers, cartas, quadros estatísticos, comunicados da Bolsa, balanços bancários e industriais, comentários governamentais, discursos, entrevistas, declarações de personalidades em evidência, reportagens jornalísticas, fotografias ou filmes e todas as outras formas de testemunho do presente formam as bases do espetáculo. O teatro documentário repudia toda invenção, ele usa material documentário autêntico difundido a partir do palco, sem modificar o conteúdo, mas estruturando a forma. Ao contrário das informações conflitantes que nos chegam todos os dias, o que se apresenta no palco é uma escolha que converge num tema preciso, geralmente social ou político. Esta escolha crítica, assim como o critério que rege a montagem dos recortes feitos na realidade, garantem a qualidade desta dramaturgia do documento.(...)